O que a Histeria ainda nos diz hoje?
Durante séculos, a histeria foi cercada por mistério e preconceito. Considerada uma condição feminina por excelência, a palavra “histeria” foi empregada na história da medicina e da cultura até se tornar um dos pilares inaugurais da psicanálise. Neste texto, pretendo falar sobre como este sintoma foi interpretado, escutado (ou não), e como ainda ressoa nas práticas clínicas e sociais de hoje, uma vez que a histeria desafia, desloca e insiste em dizer algo que muitas vezes não encontra espaços de escuta disponíveis.
A palavra “histeria” deriva do grego hystera, que significa útero e está em circulação há mais de 2000 anos e se supõe que tenha sido usada pela primeira vez por Hipócrates, o “pai da medicina”. Desde a Antiguidade, ela foi associada exclusivamente às mulheres e tratada como um distúrbio orgânico relacionado ao corpo feminino.
No século XIX, em plena revolução industrial e em uma sociedade rigidamente patriarcal, a histeria tornou-se “a doença do momento”, marcada por sintomas corporais excessivos e, muitas vezes, indecifráveis à medicina da época.
No hospital Salpêtrière, em Paris, o neurologista Jean-Martin Charcot apresentou a histeria como um espetáculo clínico. Utilizando a hipnose, ele provocava convulsões, paralisias e desmaios em pacientes mulheres diante de uma plateia médica. Para Charcot, os sintomas tinham uma “realidade física”, embora sem base orgânica. A histeria era, assim, testemunhada visualmente, mas pouco escutada em sua subjetividade.
É nesse contexto que Freud e Breuer propõem uma reviravolta: a escuta do sintoma como expressão psíquica. Em Estudos sobre a Histeria (1895), eles introduzem o método catártico, ou seja, a ideia de que recordar e verbalizar experiências traumáticas aliviava o sofrimento físico. Com isso, o sintoma deixa de ser apenas um efeito do corpo e passa a ser entendido como portador de sentido, como um modo de o inconsciente falar.
Freud e Breuer, diante desses corpos que falavam com o sintoma, decidiram fazer o contrário: silenciar os comandos e escutar as palavras. Eles propuseram uma nova via: a da lembrança, da fala e da escuta. Não se tratava mais de expulsar o sintoma, mas de perguntar o que ele queria dizer. E talvez essa tenha sido a primeira grande virada psicanalítica: considerar que o sofrimento não é só ruído, é linguagem.
Freud aprofunda essa escuta ao associar a histeria à repressão da sexualidade infantil e aos conflitos edípicos não resolvidos. Sintomas como cegueira, paralisia ou afonia seriam, para ele, formas simbólicas de expressar desejos inaceitáveis. A histeria, portanto, não era fingimento, mas um conflito inconsciente condensado no corpo.
O famoso caso clínico de Dora exemplifica esses impasses. Jovem burguesa com sintomas como tosse nervosa e perda de voz, Dora revelou, em análise, as tensões entre desejo, moral e representação feminina. Dora, cuja voz, no sentido simbólico e literal, foi frequentemente abafada, revela o quanto a histeria também denuncia a dificuldade da escuta do desejo feminino.
Mais que um transtorno, a histeria se apresenta como forma de resistência simbólica à opressão. Os sintomas histéricos podem ser entendidos como expressão de uma subjetividade silenciada, aprisionada entre os códigos da feminilidade socialmente imposta e o desejo próprio que não encontra lugar. A histeria, nesse sentido, foi uma linguagem possível.
A histeria perturba a ordem e é justamente por isso que continua a nos desafiar, pois permanece como uma questão relevante no campo clínico, cultural e simbólico.
Embora tenha sido excluída das classificações diagnósticas contemporâneas, seus modos de expressão seguem presentes nas manifestações psicossomáticas, nos transtornos dissociativos e nas experiências subjetivas que desafiam a linguagem médica tradicional. Enquanto fenômeno histórico e psíquico, a histeria continua a interrogar não apenas a clínica, mas também os discursos sociais sobre o corpo, o sofrimento e a escuta.
O termo “histeria” saiu dos manuais psiquiátricos, mas não da vida contemporânea. Seus modos de expressão se transformaram: hoje podem ser observados crises de ansiedade, fobias, dissociações, distúrbios alimentares, dores crônicas que ninguém consegue explicar. O corpo ainda fala, especialmente quando ninguém está pronto para escutar. E talvez seja esse o convite mais persistente da histeria: uma exigência de escuta.
Dúvidas comuns sobre Histeria
1. O que é a histeria?
A histeria foi entendida historicamente como um conjunto de sintomas físicos sem causa orgânica aparente, frequentemente associados ao corpo feminino. Na psicanálise, ela é vista como uma linguagem do inconsciente que se expressa pelo corpo.
2. Por que a histeria foi considerada uma “doença feminina”?
A palavra “histeria” vem do grego hystera (útero) e, desde a Antiguidade, a condição foi ligada ao corpo feminino, refletindo preconceitos culturais e médicos sobre as mulheres.
3. Como Freud e Breuer entenderam a histeria?
Eles propuseram que os sintomas histéricos são expressões psíquicas, sinais de conflitos internos e traumas reprimidos, que se manifestam no corpo como linguagem simbólica.
4. O que significa dizer que a histeria é uma “linguagem do inconsciente”?
Significa que os sintomas corporais histéricos representam desejos, angústias e conflitos que não encontram expressão direta na fala consciente, por isso se manifestam através do corpo.
5. Por que a histeria não aparece mais nos manuais diagnósticos atuais?
O termo foi retirado das classificações formais, mas seus modos de expressão permanecem em sintomas como ansiedade, fobias, dissociações e transtornos psicossomáticos.
6. Quais são exemplos contemporâneos dos modos de expressão da histeria?
Crises de ansiedade, fobias, distúrbios alimentares, dores crônicas inexplicáveis e transtornos dissociativos podem ser considerados manifestações modernas do que antes se chamava histeria.
7. Qual a importância da escuta na compreensão da histeria?
A histeria desafia a falta de escuta, exigindo que o sofrimento psíquico e corporal seja acolhido como uma forma de linguagem, não apenas como sintoma a ser eliminado.
8. O que o caso clínico de Dora nos ensina sobre a histeria?
Dora exemplifica como os sintomas histéricos estão ligados a conflitos entre desejo, moral e representação social, mostrando a dificuldade histórica de escutar o desejo feminino.
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