O calor, o corpo e o delírio: quando Vento Seco abre a porta do inconsciente
O calor, o corpo e o delírio: quando Vento Seco abre a porta do inconsciente
Resenha crítica com um olhar psicanalítico do filme "Vento Seco" (2020), de Daniel Nolasco
Vento Seco é um filme que faz o desejo transbordar para além da forma. Nele, a fantasia não é fuga: é continuação da realidade. Tudo se mistura: o calor do Centro-Oeste, a aridez da fábrica de fertilizantes, os turnos repetidos, o suor acumulado nos corpos masculinos e os silêncios que pesam mais do que qualquer fala.
O protagonista, Sandro vive essa fronteira borrada. Funcionário de uma empresa de fertilizantes no interior de Goiás, ele divide os dias entre turnos árduos, vida sem graça, encontros sexuais rápidos e um mundo interno povoado por fantasias intensas. Ele se envolve sexual e afetivamente com um colega e deseja um outro. Neste triângulo, o filme revela aquilo que a psicanálise conhece bem: o desejo quando não encontra passagem, transborda.
O cotidiano dos personagens é simples, quase banal, mas suas fantasias não são. Nolasco faz do corpo o eixo de tudo. A câmera não busca rostos, explicações ou narrativas lineares; ela se deita sobre peitorais, coxas, contornos de pênis sob sungas coladas. É um cinema que segue a pulsão, não o enredo. As cenas de futebol, por exemplo, ignoram a bola: o foco está nas costas expostas e suadas, na musculatura que provoca Sandro e, ao mesmo tempo, o acusa.
Se na realidade o desejo dele é interditado, nos sonhos o limite desaparece. As sequências estilizadas, saturadas de cores vibrantes, são mais do que estética: são a válvula de escape de um inconsciente que não suporta mais ficar contido. Depois de um tempo, já não é possível distinguir o que é fantasia e o que é vivido e talvez essa seja a melhor pista sobre Sandro: quanto mais ele deseja, menos consegue permanecer na superfície do mundo.
Nolasco não protege o espectador. Saliva, urina, esperma, sexo explícito... nada é suavizado. Entramos na cabeça de um homem que pensa com o corpo, sofre com o corpo, deseja com o corpo. E, como acontece tantas vezes na vida psíquica, onde o desejo é reprimido demais, ele retorna com força, por vias inesperadas.
O filme também tensiona um mal-entendido que atravessa a moralidade social: onde muitos imaginam “monstros depravados”, há apenas pessoas com fantasias, medos e urgências, talvez não tão diferentes de todos nós. Vento Seco é um retrato cru de um desejo que não encontra lugar, e de tudo o que nasce dessa impossibilidade.
É a partir desse terreno, quente, opaco, febril e seco que se pode observar a relação entre Sandro e Ricardo. Uma relação que revela mais sobre o inconsciente do que sobre a trama: uma história de desejo, vergonha, ódio e projeção. E é justamente aí que a psicanálise encontra sua fresta.
É neste ponto que o filme deixa de ser apenas história e toca o território psíquico: quando Ricardo aparece, Sandro encontra não um homem, mas um espelho. E é desse espelho que nasce o ódio: aquele que Freud descreveu tão bem: o rechaço no outro do que insiste em mim.
Há uma cena em Vento Seco que fala menos de crime e mais de projeção. Sandro, incapaz de assumir o próprio desejo, coloca uma garrafa de uísque na mochila de Ricardo e o acusa de roubo e em seguida, risca seu carro. É um gesto pequeno na superfície, mas violento na lógica do inconsciente: não é Ricardo que Sandro quer incriminar, é aquilo em Ricardo que o fere.
Ricardo circula com uma liberdade que Sandro não suporta. E não suporta porque ela diz algo sobre ele: aquilo que ele não vive, não admite, não pode confessar nem a si.
É nessa fricção que a frase atribuída a Freud ganha corpo: “Rechaço em ti o que observo em mim”. O ódio de Sandro não nasce do outro, mas do que Ricardo faz ecoar dentro dele.
Acusar Ricardo é uma tentativa infantil e trágica de capturar a liberdade dele para não ver a própria prisão. Quando o plano falha e Ricardo não é enquadrado, Sandro devolve a agressão riscando o carro. O risco no metal é o risco na imagem: um ataque ao brilho que o ofusca. É uma forma desesperada de tentar borrar aquilo que insiste em existir fora do controle dele. Ricardo, por sua vez, encarna o que Sandro teme e deseja: um corpo que não pede desculpas por existir.
A fúria de Sandro é a fúria contra o próprio desejo que ele tenta reprimir até tomar a forma de hostilidade. Ele odeia em Ricardo a coragem que não encontra em si.
No fundo, Sandro não acusa Ricardo de roubo. Ele o acusa de algo muito mais intolerável: de viver sem vergonha o que, nele, permanece interditado.
Ficha técnica completa
Nome: Vento Seco
Ano de produção: 2020
Duração: 110 minutos
Direção e Roteiro: Daniel Nolasco
Gênero: Drama, Romance
País: Brasil
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