O duplo e o abismo em “Nós”, filme de Jordan Peele
O duplo e o abismo em “Nós”, filme de Jordan Peele
Na psicanálise, o duplo não é simples cópia, é resto. Na vida psíquica, o sujeito é atravessado por divisões. Há uma parte consciente, a que se mostra, a que se reconhece e há outra parte que fica no inconsciente: desejos, pulsões, fantasias, traumas, identificações antigas. Essa parte recalcada nunca se apaga completamente. Ela retorna em forma de resto: nos sonhos, nos sintomas, nas repetições… e também na figura do duplo.
O duplo, então, não é uma cópia perfeita de nós mesmos (como um reflexo no espelho). É a encarnação daquilo que foi excluído da nossa imagem de nós, o que não coube, o que não queremos ver, mas continua nos habitando.
No filme Nós, esse “resto” aparece de modo literal: os Tethered são o que sobra da sociedade de cima, o produto do recalque coletivo. Eles vivem nas sombras, mas seguem ligados por fios invisíveis aos seus “originais”.
Ou seja, o duplo psicanalítico é um tipo de retorno do recalcado em forma de corpo, o sujeito confrontado com aquilo que tentou negar. Por isso, ele é resto: não cópia. É o que foi recalcado e insiste em retornar. O outro que nos habita, mas que negamos.
Os Tethered são a materialização do inconsciente: não têm voz e não têm palavra. São o retorno de tudo o que foi negado: o inconsciente social de um país, o inconsciente íntimo de um sujeito. Adelaide, a protagonista, carrega esse espelho rachado. Sua angústia não é apenas o medo de ser invadida, mas a vertigem de reconhecer-se naquilo que teme.
O final desconcerta porque rompe a separação: nós e eles não são opostos, são espelhos. E talvez seja essa a ferida que o filme abre: perceber que o que julgávamos “nosso” sempre foi habitado pelo estranho.
Nós é um espelho psicanalítico da cultura e do sujeito: quanto mais tentamos afirmar quem somos, mais o que fomos se move no fundo, esperando a hora de emergir. O terror de Jordan Peele é esse, não o de ser atacado, mas o de se ver.
No fim, Nós não pergunta quem são os monstros. O que fazemos com o que expulsamos de nós? E o que acontece quando o que foi expulso volta a bater à porta?
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